FAISCA: uma ferramenta inovadora para o avanço da gestão financeira dos recursos da cobrança pelo uso da água e a sua articulação com o planejamento da bacia
Este artigo foi publicado originalmente no site do Portal Saneamento Básico e só está disponível em português. (EN: This article was originally published on the Portal Saneamento Básico website and is available only in Portuguese. )
Por: Stela Goldenstein e Iraúna Bonilha
Um dos avanços do Estado brasileiro imediatamente após a Constituição de 1988 foi o estabelecimento de Políticas de Recursos Hídricos nas esferas federal e estaduais. Foram consagrados os conceitos de governança das águas e os instrumentos para essa gestão: os planos de recursos hídricos, o enquadramento dos corpos d’água, a outorga dos direitos de uso da água, a cobrança pelo uso da água e o sistema de informações sobre recursos hídricos. Dentre estes instrumentos, a cobrança pelo uso da água, medida em função dos volumes de água bruta captados e de carga orgânica de efluentes descartados nos rios, envolve um processo de implementação complexo dos pontos de vista institucional e da integração dos instrumentos de planejamento e gestão dos recursos hídricos nas bacias. Apesar dos avanços alcançados por parte de alguns dos comitês e agências de bacias existentes, as lacunas na integração dos instrumentos da cobrança e dos planos de bacias indicam a necessidade de implementação de novos meios para aprimorar a e apoiar as decisões sobre valores e finalidades da cobrança, prioridades de aplicação dos recursos arrecadados e a sustentabilidade financeira dos investimentos indicados nos planos.
A legislação qualifica a água como um bem de domínio público, recurso natural limitado e dotado de valor econômico.
Diferentemente da cobrança pelo serviço urbano de abastecimento de água, em que o consumidor paga uma tarifa pelos serviços de coleta, tratamento e distribuição prestados por uma concessionária, a cobrança pelo uso da água bruta é uma remuneração paga ao Estado pela outorga do direito de uso de um bem que é de todos. Reconhecendo a água como bem econômico, a cobrança deve dar ao usuário a indicação de seu real valor, incentivar a racionalização do uso, e obter recursos para o financiamento de programas e intervenções definidos nos planos de recursos hídricos para a bacia hidrográfica em que foram auferidos.
A cobrança pelo uso de recursos hídricos se aplica aos usos da água considerados significativos e sujeitos a outorga, tais como os aproveitamentos hidrelétricos, a captação e a derivação de águas superficiais, a extração de água subterrânea e o lançamento de efluentes sanitários, enfim, todos os usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água de um corpo de água, seja para abastecimento público, utilização como insumo de processos produtivos ou tratamento e afastamento de esgotos.
A gestão hídrica se dá de forma descentralizada e participativa, em cada bacia hidrográfica, visando sempre ao uso múltiplo das águas e à gestão dos conflitos de uso. Os Comitês de Bacias Hidrográficas são entes deliberativos, dos quais participam representantes dos setores usuários, da sociedade civil e dos órgãos públicos gestores das águas. As decisões sobre os valores a serem cobrados pelo uso da água, assim como os planos de investimentos necessários para a segurança hídrica, são definidos pelos Comitês de Bacias e gestores públicos das águas.
No entanto, o que se observa é que o instrumento da cobrança pelo uso da água, vinte e cinco anos depois da sua regulamentação, não tem sido capaz de atender aos objetivos a que se destina segundo a legislação.
Mesmo em bacias consideradas críticas, ou em estresse hídrico estrutural, os baixos valores cobrados pelo uso da água não refletem a escassez do bem e não contribuem para a internalização do valor real da água, especialmente como insumo para atividades produtivas. Além disso, com frequência não geram arrecadação suficiente para os investimentos necessários nem mesmo ao aprimoramento da gestão, como o monitoramento, a permanente atualização de cadastros de usuários, e a elaboração de planos de ação e projetos consistentes. Em muitas bacias brasileiras, os recursos arrecadados com a cobrança sequer dão conta de cobrir o funcionamento dos comitês, e, de um modo geral, ficam muito aquém dos montantes de recursos necessários para investimentos em obras de infraestrutura hídrica e saneamento.
A definição destes valores de cobrança pelo uso da água no âmbito dos comitês sempre será um processo de caráter político, dado que efetuada por um fórum representativo dos diferentes setores da sociedade. Em realidade, os principais potenciais pagadores pelos direitos de uso da água, que são as concessionárias urbanas de água e saneamento e as entidades representativas de empresas dos setores industrial e agrícola, têm maior poder de pressão política nos comitês e tradicionalmente tendem a resistir à revisão dos valores praticados. As dificuldades para o estabelecimento de valores realistas são tais que, por exemplo, no Estado de São Paulo, o setor agrícola é simplesmente isento da cobrança pelo uso da água. Em bacias paulistas consideradas críticas em termos de disponibilidade hídrica, nas quais é premente a necessidade de ações e investimentos para a mitigação dos efeitos da escassez, os valores unitários cobrados pelo uso da água bruta permanecem irrisórios e, frequentemente, sequer passam por reajustes para compensar a inflação.
As decisões sobre valores de cobrança pelo uso da água continuarão sendo de natureza política, resultante do embate de visões e interesses que faz parte do jogo democrático. Porém, os processos decisórios precisam ser melhor fundamentados tecnicamente, com base em metodologias, análises e justificativas mais consistentes, que permitam aos gestores e aos usuários de recursos hídricos vislumbrar diferentes estratégias, critérios, modelos e cenários de valoração e precificação da água bruta, buscando decisões realistas e a viabilização de investimentos importantes para as bacias, conforme previsto nos respectivos planos.
Visando ao aprimoramento do Sistema Nacional de Gestão de Recursos Hídricos e acreditando no potencial da cobrança pelo uso da água como indutor de investimentos estratégicos para as bacias, o 2030 Water Resources Group, com apoio equipe de consultores[1] e da Agência das Bacias PCJ, desenvolveu uma metodologia e uma ferramenta operacional digital que permite fornecer bases técnicas seguras para que as discussões sobre os valores de cobrança em cada bacia, por parte dos diferentes interlocutores presentes nos Comitês de Bacias, se fundamentem no planejamento financeiro da aplicação dos recursos, com foco na implementação dos planos de bacias e respectivos planos de ação e investimento plurianuais.
Os estudos que resultaram na Ferramenta de Análise Integrada do Sistema de Cobrança pelo Uso da Água & Plano de Bacia – FAISCA – dão continuidade a esforços do Banco Mundial para identificar aspectos a serem aprimorados na gestão dos recursos hídricos no Brasil, seguindo as diretrizes e recomendações consolidadas no documento “Diálogos para o Aperfeiçoamento da Política e do Sistema de Recursos Hídricos no Brasil” (Banco Mundial, 2018)), e aprofundando reflexões sobre governança hídrica e cobrança pelo uso da água apresentadas em estudos da OCDE (2015 e 2017).
A FAISCA é uma ferramenta digital de planejamento financeiro estratégico cuja finalidade é instrumentar as análises e as decisões sobre os valores da cobrança pelo uso da água por parte dos comitês de bacias, a fim de que elas sejam mais realistas e prudentes, no sentido de melhorar a sinalização econômica da escassez de água e aumentar o potencial de arrecadação tendo em vista as reais necessidades de investimentos para reforçar a segurança hídrica.
Hoje, a relação entre cobrança e plano é uma via de mão única, ou seja, verifica-se quanto foi arrecadado e se decide o que é possível fazer com os recursos, após cobertos os gastos de custeio administrativo dos comitês de bacias e, eventualmente, das suas agências. A premissa metodológica que embasa a FAISCA é de que é necessário criar uma via de mão dupla neste processo de decisão, de maneira que as necessidades reais das bacias e as metas definidas nos planos tenham o devido rebatimento nas discussões sobre o propósito, os valores, os critérios e os mecanismos da cobrança. Ao articular a definição dos valores de cobrança à definição de quais as parcelas do plano que serão sustentadas com os valores a serem arrecadados, a ferramenta também permite identificar as lacunas de sustentabilidade financeira que restringem a capacidade de execução e alcance das metas de segurança hídrica e saneamento pelos agentes regionais, considerando-se a cobrança como uma das fontes de recursos. Com isso, pode-se otimizar a capacidade de aplicação dos recursos arrecadados, aumentar a eficácia e aderência às prioridades definidas nos planos de bacias, e oferecer aos usuários pagadores mais segurança e transparência.
A metodologia e a ferramenta foram desenvolvidas a partir do estudo de caso das Bacias dos rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí (Bacias PCJ), que abrangem porções dos territórios dos estados de São Paulo e Minas Gerais. De um lado, foram identificadas as ações e seus cronogramas de execução, as estimativas de investimento e as metas prioritárias previstas no Plano das Bacias PCJ, com horizonte para 2035. De outro lado, foram identificados os usos outorgados nos bancos de dados disponíveis, e contabilizados os volumes de recursos arrecadados com a cobrança ao longo do tempo, com base nos valores unitários (PUB) praticados. A matriz de cruzamento mostra o fluxo de caixa no tempo com as estimativas de arrecadação e de desembolso para investimento nos conjuntos de ações previstos no plano, em valores anualizados. Uma vez montada a matriz com essas informações, a FAISCA permite simular cenários possíveis de arrecadação e de desembolso, alterando-se os valores unitários, os critérios de cobrança, as prioridades, os prazos de execução das ações ou o tipo de financiamento (oneroso e não oneroso).
Em cada simulação, a matriz mostra as lacunas de financiamento que surgem ao longo do tempo até o horizonte do plano, quais as cestas de ações que podem ser financiadas com os recursos da cobrança, e como o aumento da arrecadação poderia ajudar a financiar mais ações, juntamente com outras fontes de recursos. Além disso, a ferramenta inclui um módulo para espacialização dos investimentos e dos benefícios dessas ações, possibilitando discutir o estabelecimento de diferenças nos valores de cobrança para usuários poluidores e usuários beneficiários.
A ferramenta apresenta várias funcionalidades, permitindo simulações sucessivas que facilitam à tomada de decisão, que de outra forma seria mais demorada e dependente da contratação de estudos para revisão dos valores e mecanismos de cobrança, como é o procedimento adotado atualmente. Pode-se simular não apenas os valores básicos de cobrança, mas o peso de cada coeficiente a ser aplicado em função da localização do usuário, seus ganhos e responsabilidade em relação aos investimentos a serem realizados, assim como é possível incorporar novos coeficientes. Desta forma, pode-se desenvolver avaliações rápidas, mas sofisticadas e seguras, que dão apoio às decisões sobre os valores a serem cobrados. Ao elencar todas as ações do plano de bacia e considerar a cobrança como um dos itens de uma “cesta de recursos”, de forma complementar investimentos financiados com tarifas, com recursos públicos, ou ações executadas por privados, a FAISCA permite a identificação das lacunas de financiamento do plano, o que é etapa fundamental para os esforços de mobilização das demais fontes potencialmente disponíveis. Assim, a FAISCA instrumenta o espaço de negociação entre os atores da gestão e do planejamento da bacia, o que pode facilitar a aceitação da cobrança pelos usuários, sendo que esta é uma importante limitação apontada por estudos recentes.
A FAISCA pode ser carregada com as informações de qualquer bacia hidrográfica, para o que é necessário introduzir as informações referentes ao conjunto de ações do Plano de Bacia com seus cronogramas, as prioridades e os valores a serem investidos em cada projeto, ano a ano. As prioridades podem ser modificadas ao longo das discussões, conforme a disponibilidade de recursos e as hipóteses de arrecadação. Também é preciso introduzir a identificação dos usuários pagadores ou não, seja por captação ou por lançamento, bem como sua localização no sistema georreferenciado da FAISCA. É importante que haja sincronia entre a revisão periódica dos valores de cobrança, a revisão dos planos de bacia e o detalhamento dos planos de ação e investimento, permitindo assim integração das decisões.
A caracterização da distribuição espacial da influência e benefícios de cada investimento para os usuários facilita a definição de critérios para modulação de valores de pagamento e a simulação do rebatimento da cobrança total sobre cada usuário-pagador. Pode-se também compatibilizar as listas de ações com as diferentes fontes de recursos e as possíveis estratégias de financiamento, e, se necessário, reconsiderar o plano de ações e investimentos para ajustá-lo às capacidades de pagamento dos usuários, viabilizando assim uma nova pactuação.
A simulação dos fluxos de caixa da Agência e de cada um dos projetos permite otimizar a distribuição dos valores a serem dispendidos ao longo da execução dos projetos e, portanto, sua aplicação em diferentes projetos simultaneamente. Quanto aos tipos de financiamento projetos com recursos da cobrança, a ferramenta permite a adoção de diferentes lógicas de financiamento: oneroso (em que o todo ou parcela retorna), não oneroso, e com ou sem contrapartidas. Pode-se, ainda, simular fluxos de caixa nos quais os valores da cobrança sejam utilizados para alavancar empréstimos que tenham as cobranças futuras como garantia.
A calibração da FAISCA para o caso das Bacias PCJ introduziu também um novo critério para a cobrança, que é a simulação do impacto da arrecadação com a incorporação de valores de cobrança sobre o lançamento de DBO, Nitrogênio e Fósforo, o que é antiga expectativa regional. Outros critérios poderiam, igualmente, ser identificados e incorporados.
Ao possibilitar a simulação de resultados de diferentes lógicas de cobrança sobre as ações do Plano, tanto em seu caráter temporal (o que financiar e quando) quanto em seu caráter espacial (onde), a FAISCA pode ser um instrumento muito útil para o aprimoramento da gestão de recursos hídricos e os esforços pela segurança hídrica.
[1] Foram corresponsáveis pelo desenvolvimento dos estudos aqui comentados: Rosa Maria Fomiga-Johnsson, Guilherme Fernandes Marques e Patrick Laigneau.